A IMPENHORABILIDADE E A EXTENSÃO DO BEM DE FAMÍLIA

A IMPENHORABILIDADE E A EXTENSÃO DO BEM DE FAMÍLIA

Segundo Lobo[1], o bem de família é o imóvel destinado à moradia da família do devedor, com os bens móveis que o guarnecem e que não podem ser objeto de penhora judicial para pagamento de dívida. Tem por objetivo proteger os membros da família que nele vivem da constrição decorrente da responsabilidade patrimonial, na qual todos os bens econômicos do devedor ficam submetidos, pois estes, na execução, podem ser judicialmente alienados a terceiros ou adjudicados ao credor. O bem ou os bens que integram o bem de família são afetados à finalidade de proteção da entidade familiar.

Ora, a casa, o lar, realiza um dos direitos fundamentais necessários à vida e à dignidade humana, constituindo o patrimônio mínimo à concretização de uma vida digna. A lei nº 8009/90[2] considera bem de família um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente, definindo o objeto de proteção à penhora no caput e parágrafo único do art. 1º:

 

Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

Segundo afirma Didier[3], a Constituição Federal ampliou o conceito de entidade familiar e, desta forma, todos que se agrupam em instituição social, incluindo-se ascendentes, descendentes, irmãos, o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, assim como o separado judicialmente e o divorciado, estão protegidos pela lei, já que o objetivo é garantir um teto para cada indivíduo, não se direcionando a um núcleo de pessoas.

A Súmula nº 364 do STJ confirma essa extensão de proteção para além da entidade familiar: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”.

Ademais, o preceito está esculpido no art. 226, caput, da Constituição Federal, segundo o qual a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, de modo a indicar que aos dispositivos infraconstitucionais pertinentes confira interpretação que se harmonize com o comando constitucional, a fim de assegurar efetividade à proteção de todas as entidades familiares em igualdade de condições. Assim, a hermenêutica que concede maior amplitude à égide consignada na Lei nº 8.009/90, decorre do direito constitucional à moradia estabelecido no caput do art. 6º da CF/88 e concretiza a proteção da família e da moradia essencial, além da preservação da dignidade da pessoa.

De acordo com os seus artigos 1º e 5º, a Lei nº 8.009/90 preserva, em verdade, o único imóvel residencial de penhora, ainda que ele se encontre cedido a familiares, filhos, enteados ou netos que nele residam. Assim, a circunstância de o devedor não residir no imóvel não constitui óbice ao reconhecimento do bem de família. Nos termos da legislação específica, se o casal ou a entidade familiar possuir vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade será restrita ao imóvel de menor valor, salvo, conforme o art. 5º, parágrafo único da lei mencionada, outro tiver sido registrado no Registro de Imóveis.

Porém, ressalta-se que, possuindo a entidade familiar um único imóvel, ainda que locado a terceiros, este não perderá a sua qualidade de bem de família; desde que a renda obtida com a locação seja revertida para subsistência ou moradia de sua família, conforme a Súmula nº 486 do STJ – Superior Tribunal de Justiça. Permite-se, ainda, a penhora do imóvel pertencente à pessoa jurídica, conforme prevê a Súmula nº 451 do STJ.

Já no tocante à possibilidade de penhora de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis, de acordo com a Súmula nº 449 do STJ, seria permitida. Entretanto, em razão da hipótese criada pela Lei n° 12.607/2012, que alterou a redação do § 1º, do art. 1331 do Código Civil, há relativização, pois a garagem somente poderá ser penhorada em execuções promovidas por pessoa que não seja estranha ao condomínio. Entendo que, se o bem não pode ser alienado a pessoa estranha ao condomínio quando não existir permissão em cláusula na convenção do condomínio, também não poderá ser penhorado em sede de execução promovida por pessoa estranha ao condomínio.

Quando se trata de imóvel hipotecado em que a garantia real for prestada em benefício da própria entidade familiar e não para assegurar empréstimo obtido por terceiro ou pessoa jurídica, possível a penhora do bem, nos termos do art. 3º, V, da Lei nº 8.009/90. Passível ainda de penhora o bem de família para assegurar pagamento de dívidas oriundas de despesas condominiais do próprio bem[4].

Importante salientar que a proteção conferida ao instituto de bem de família é princípio concernente às questões de ordem pública, não se admitindo a renúncia por seu titular do benefício conferido pela lei.

Ademais, o entendimento da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é de que a lei que trata a impenhorabilidade do bem de família deve ser examinada à luz do princípio da boa-fé objetiva, devendo ser reprimidos o abuso do direito de propriedade, a fraude e a má-fé do proprietário, tornando ineficaz a norma protetiva que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação do agente em desconformidade com o ordenamento jurídico.

Por fim, uma das situações que trazem maior polêmica se refere à (im)penhorabilidade do bem de família do fiador. O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 549 da Corte, segundo a qual “é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação”. Em 2006, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar essa questão no julgamento do RE 407.688, decidiu pela legitimidade da penhora do bem de família pertencente a fiador de contrato de locação. Tal orientação foi alçada como precedente jurisprudencial no Tema 295 do STF: “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no artigo 3, VII, da lei 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no artigo 6º da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000”, e na Súmula 549 do STJ: “É válida a penhora de bem de família pertencente ao fiador de contrato de locação”.

Ocorre que, recentemente, no RE 605.709/SP, a 1ª Turma do STF adotou entendimento contrário, compreendendo que a dignidade da pessoa humana e a proteção à família impedem a penhora do bem de família do fiador em locação comercial, sob pena de privilegiar a satisfação do crédito do locador do imóvel comercial ou o livre mercado. O Supremo Tribunal Federal não declarou a inconstitucionalidade do dispositivo legal, criando uma distinção entre locação comercial e residencial.

Essa variação de interpretações diz respeito a uma norma que nunca foi de pacífica aceitação, gerando instabilidade e insegurança jurídica, principalmente com o recente entendimento do STF, já que contraria o que prevê a legislação específica e processual. É necessária a alteração normativa por via própria, mediante o exercício de atividade legislativa e não em decorrência de interpretações do Poder Judiciário, que causam incertezas e inconsistência nos tribunais.

 

[1] LOBO, Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2017. P. 187

[2] Lei 8.009/90. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm>.

[3] DIDIER JUNIOR, Fredie. et al. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2017. V. 5.

 

[4] Súmula 83 do STJ

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